Caretas do Mingau é uma das celebrações mais interessantes da Independência da Bahia. Na madrugada do dia 1º para o dia 2 de Julho as mulheres do município de Saubara, vestidas de branco e com os rostos cobertos, se reúnem para percorrer as ruas da cidade distribuindo mingau, bebendo licores e fazendo a maior algazarra do mundo. Dona Maria da Cruz Santos, de 84 anos, lidera a brincadeira que relembra o papel importante das mulheres do então distrito da Freguesia de São Domingos de Saubara.
Para Judite Barros, principal pesquisadora da História e da Cultura de Saubara, esta é a manifestação folclórica mais antiga do município. A história é a seguinte: depois dos acontecimentos do dia 25 de Junho em Cachoeira (essa história será contada no post #4, daqui a 15 dias), a guerra pela Independência na Bahia foi inevitável. Salvador encontrava-se ocupada por portugueses, de modo que a resistência baiana aconteceu sobretudo no interior, e principalmente no território do Recôncavo da Bahia de Todos os Santos: Itaparica, Madre de Deus, Sto. Amaro, S. Francisco do Conde, Cachoeira, Maragojipe, Nazaré, Salinas da Margarida e algumas outras vilas sediaram combates e abrigaram os exércitos brasileiros arregimentados no Recôncavo e no Sertão.
Desde 1696 o território de Saubara era distrito da Freguesia de Santo Amaro. Situado logo na entrada direita do Rio Paraguaçu, é possível ver pelo mapa retirado da wikimapia que o terreno era estratégico para a resistência, pois era passagem necessária das tropas portuguesas no caminho para o interior. A defesa desta região foi comandada pelo Padre Manuel José Gonçalves Pereira, que convenceu os pacatos homens da terra a se armar contra os lusos.
O povoado acabou se esvaziando, uma vez que a maior parte dos homens se deslocou para o mato, como nas guerrilhas. A cidade foi ocupada por alguns portugueses inimigos. Foi aí que as mulheres inventaram a estratégia do Mingau para alimentar seus maridos, filhos e pais: fingindo-se de assombrações, saíam em grupo pelas madrugadas fazendo muito barulho e apavorando os portugueses. No caminho deixavam alimentos em locais previamente combinados, retornando à vila antes do amanhecer.
Essa é a lenda das Caretas do Mingau. Se ela é verídica, ou mesmo provável, é outra questão. O fato é que deu origem a uma manifestação cultural importante, e que reivindica o reconhecimento da participação feminina nas lutas pela independência. Aliás, o símbolo da independência em Saubara é feminino, é a Cabocla, saudada por todos no final da festa.
Saubara é uma cidade riquíssima em termos de patrimônio cultural, um espaço privilegiado onde as histórias são fixadas por meio de brincadeiras. O que chama a atenção não é exatamente a combinação de música, dança e drama para compor as narrativas de fatos diversos, mas a quantidade de manifestações e o virtuosismo das comunidades locais no emprego dessa linguagem. Chega a ser um abuso a sofisticação com que os signos são trabalhados nos ranchos e ternos.
Chegança, Barquinha, Zé do Vale, Nego Fugido, Caretas (outras caretas diferentes das do Mingau), Lavagens, Ternos, Ranchos, Pastoris e Bailes variados, e muitas outras brincadeiras que eu não conheço… isso além de uma vertente poderosa de Samba Chula, Casas de Candomblé importantes e o ofício das Rendeiras (renda de bilro) bem organizado pela Associação das Rendeiras.
Não tenho dúvidas de que a maior contribuição que Saubara pode dar à sociedade global é a vitalidade de sua cultura e o gosto pela brincadeira. Dia 2 de Julho está chegando, e D. Maria da Cruz vai estar lá, mais uma vez, saudando a Cabocla.